sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Vó Salustiana - Lembranças

Vó Salustiana - Lembranças
(Zetti)

Para quem vinha do sítio da vó Salustiana em direção da casa do Dédis e Bega, passava pelo campinho hoje do Tonico.
Entre os pinheiros e barbas de bode, ziguezagueava uma estrada.
Ao entrar no mato, as ramagens e as taquaras por cima da estrada, formavam um túnel.
Quem se lembra? Lembrar é voltar.
Queridas primas e primos de 1º grau, de 2º grau, de 3º, de 4º, de 90º graus:
Convido-os a voltar comigo, no túnel... do tempo!
O menino Zetti, com 6 ou 7 anos, estava lá, no sítio da sua avó.
A casa não era a mesma postada na internet e que foi feita pelo Dorvalino e o “Padim Ligório” como o chamava o Maneco.
Na mais antiga, havia uma parte ainda mais antiga onde se distribuíam os quartos.
Vovó Salustiana, viúva, ainda dormia na cama de casal. No outro telhado unido a este por uma “bica”, estava a cozinha com o fogão a lenha. Num canto da sala, a rede onde namoravam tio Zico e tia Vergínia.
E num canto qualquer, o banquinho redondo, de três pés e por todos sabido: era o banquinho da Vó Salustiana.
A máquina para fiar lã era do último tipo, pois até Tia Mila manejava e pedalava uma igual.
Lá não havia ainda a máquina de moer milho, mais moderna ainda!
Conta-se a história de dois compadres, um Serpa e outro Almeida, que moravam nos cafundós.
Um disse para o outro: - Ouvi falá lá em Parma que daqui há vinte anos, os americano vão pra lua. O outro respondeu: - Cumpadre, depois que inventaram a máquina de moê mio, que vi na Fazenda Cachoeira, não duvido de mais nada!
Zetti era o “dodói” da sua Avó, pelo menos no ano feliz que lá passou. 1949, talvez.
O menino fez confusão com tia Picucha e as hortências do jardim. Ortência? Seria o apelido da Tia Picucha?
Num domingo à tarde, o menino não foi muito feliz: ao pular uma cerca, quebrou o braço e abriu a guela no mundo! Ainda bem que passava uma médica ortopedista. Vou dizer o nome completo dela: Doutora Salustiana Linhares Serpa.
Fulano, vá buscar uma taquara!
Com os talos de um gomo, pano e sal, fez uma tipoia. Vó Salustiana desentortou o braço como uma mestra enviada por Deus.
Vai doer um pouquinho, disse, mas não doeu. Até quando quebrou, não doeu nada.
Mas então, o que me fez chorar? Confesso hoje: foi olhar o braço torto!
Parecia o bico torto do louro na gaiola que imitou meu choro e todos riram. Quanto mais riam, mais o louro zombava de mim! Até que o menino riu e chorou ao mesmo tempo. Tragicomédia inesquecível!
O cachorro vira-mato era um vira-lata imune ao veneno de cobra, de tantas que o morderam.
Era verão. Zetti, ponha um chapéu e vá lá no seu Otávio pra mim! Como andava descalço, Vovó sempre dizia: cuidado onde pisa! Desta feita, quase pisei numa cobra coral que atravessou a estrada. Era muito bonita. Sua cor rubro-negra, contrastava com a relva. A camisa atleticana caia bem nela, não em mim.
Ao anoitecer, as curucacas piavam no pinheirão e as saracuras na beira do rio. Mais ao longe, os inhambus e o ronco misterioso dos bugios que dançavam São Gonçalo nos galhos de algum pinheiro. Vi a semelhança da dança quando já era seminarista, na fazenda do seu João Dias e Miloca.
Oh, São Gonçalo e São Francisco de Assis: protejam os bugios, agora sem pinheiros e sem florestas!
Zetti, depois que quebrou o braço, vivia grudado na saia da vó. Lá vem o “nariz de cheirar peido”, brincava ela, mas era só doçura sua voz.
Por sinal, tudo ali era doce: os bolinhos do forno em forma de marreco que a tia Picucha fazia só pra mim, o milho verde, o olho d’água, as parreiras, a batata doce, as amoras do mato, as ameixas e, naturalmente, o mel. Dezenas de caixas de abelhas mansas! Há apenas vinte metros da casa, começavam as fileiras de caixas e o zumbido peculiar.
Peculiar também, a batida do monjolo que, de graça e com graça moía os grãos. Horas e horas batia, assim como a criada Seissa no pilão.
Um pouco além do monjolo, um meio alqueire de campo do Manuel Santos e uma velha porteira que minha imaginação associa a duas músicas:
“O Menino da Porteira” e outra que não sei o nome.
O 1º verso é assim:
Adeus, porteira velha
Porteira do campo triste
Mais tarde cheia de flores
Alegre sempre me viste
Paródia:
Vovó Salustiana velha
Roseira que ainda existe
Linhares Serpa de flores
Em lindos botões te abriste
2º Verso:
Oh minha morena linda
Eu vou para não voltar
Não posso ver o teu canto
Não posso sem chorar
Paródia:
Vovó Salustiana linda
Um dia vou te encontrar
E então pedir tua benção
Para sempre vou te amar
Vira-mato latiu, latiu, latiu. Quem será? Seu Ozório estava de passagem por ali e havia dois portões para abrir.
Vamos apear, disse Tio Zico?
É a única lembrança que tenho daquele primo da minha avó. Pareceu-me revestido de certa dignidade naquele cavalo bem encilhado. Talvez o respeito do tio Zico por ele, me fez pensar assim. Mais tarde constatei que seu filho Dédis encilhava assim seu cavalo quando chegava em Santo Antônio no sábado. Para a Bega era o mesmo que ver seu noivo num carro zero Km!
Por falar em sábado, esse era o dia de tomar banho. Todo o sábado, sem exceção!
Os homens se banhavam pelados nas águas frias do rio caçador. As mulheres em água morna ou no dizer da vó, “quebradinha da frieza”. Era num gamelão.
Para os homens, banho brasileiro. Para as mulheres, o sofisticado banho “tcheco”.
Explico.
O menino não sabia como era aquele banho, mas escutava o barulho da água: tcheco, tcheco, tcheco!
Antes de sair deste túnel do tempo, lembro do belo costume de pedir benção que ainda está vivo em algumas famílias. Na fazenda do João, no Mato Grosso, é assim.
De manhã se o menino se esquecia, diziam: Dormimos juntos hoje?
Às vezes se contavam histórias de “visagens”. Mas o menino dormia feito um anjo, porque um outro anjo estava ali, na beira da sua cama.
Antes de dormir, tia Picucha me ensinava o “nome do Pai” e Vovó ria quando me atrapalhava nos gestos.
Depois vinha o “Santo Anjo” e em seguida a benção:
Bença vó, bença tia, bença tio!
Certo dia, Vovó foi me cobrir na cama e levou a vela de volta.
Então ouvi uns estalos na velha casa que me deixaram de cabelos em pé. Aí lembrei do Anjo da Guarda, esse mesmo que até hoje me acompanha.
De mãos postas por debaixo do acolchoado, balbuciei:
Santo Anjo do Senhor,
Meu zeloso guardador,
Se a ti me confiou,
A piedade divina,
Sempre me rege,
Me guarde,
Me governe,
Me ilumine,
Amém.

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