sexta-feira, 7 de setembro de 2018

O Menino e o Pinheiro

O Menino e o Pinheiro
(Zetti)


Era alto, muito alto. Bem de frente a casa de minha avó. Era bonito. Na copa, seus longos galhos formavam uma majestosa umbela sob o céu daquele sítio bucólico. Os longos galhos eram como braços ao vento, querendo abraçar tudo.
O Pinheirão parecia saber quem era eu. Olhava lá de cima o menino sensível, sempre grudado na saia de sua avó.
Dona Salustiana, enquanto regava sua horta, falava com as salsinhas e cebolinhas.
O menino que tudo observava tentou, por sua vez, conversar com o pinheiro, bem maior que as plantinhas de sua avó.
Menino de cinco ou seis anos, Pinheiro de cento e tantos, amigos, agora e interlocutores.
O menino tímido, mais ouvia que falava. Seu amigo contava histórias que o vento lhe passava. 
Brisa que vinha do Norte, do Sul ou da Europa pós-guerra. Dizia ele que os humanos matavam, não só os porcos ali do chiqueiro, mas se exterminavam entre si.
E toda vez que o menino via matarem porcos, pensava: eles estão treinando para matar gente.
O pinheirão, enternecido com o amigo, dizia: você é um bom menino. Queria que você visse daqui de cima, nos meu braços, as matas, enquanto são belas. Porque os humanos irão arrasar com tudo , em nome do progresso.
E quando você voltar aqui, não mais estarei. Você vai chorar porque eu sei, és meu amigo. E és um bom menino.
Sua avó morrerá aos noventa anos, naturalmente, como uma vela se apaga. Docemente como um anjo.
Quanto a mim, parece que já escuto o barulho da serra. O vento me avisou das serrarias aqui perto. Mais dia, menos dia, tombarei como um gigante ensanguentado. Mas lembrarei do amiguinho. Você é um bom menino, repetia, para me consolar.
Mas até hoje não há consolo para este coração que não se arreda de lá. Continuo um menino inconsolável para sempre.
Fotografia do amigo, tábua, suvenir, nada me conforma. Clone também não. Clone não é amigo ressuscitado.
Vinícius naquela época, bem disse: “ As árvores choram (...) quem morreu? ” Vinícius te respondo: as florestas morreram.
Na mesma época, em Porto Alegre uma árvore chorava, porque sabia que uma serra da prefeitura a derrubaria. Então um jovem sentou-se em seus galhos ou colo e de lá não saiu. O povo o apoiou e a árvore foi salva.
Querido amigo Pinheirão: eu sei que você também me pegaria no colo naquela hora trágica e eles não te derrubariam.
Mas você estava só e caiu pesadamente junto a cerca. O chão tremeu e alguns bichos saíram de suas tocas assustados. E meu coração até hoje bate forte, quando imagina o amigo estendido no chão. As curicacas quando chegaram para pernoitar nos teus galhos, sobrevoaram no vazio.
Covardes! Devolvam meu amigo, por favor!
Amigo também dos porcos, do alto jogava pinhões para eles enquanto me contava histórias do vento. E com ternura, repetia:  você é um bom menino! Devolvam meu amigo, os pinheirais e as florestas luxuriantes do sudoeste do Paraná. Devolvam os rios da minha infância onde nas tardes de verão íamos nadar.
Rios de águas claras, azuis como os olhos da vizinha, Bela e Santa Catarina. 
E que dizer dos porcos mortos que poluíram os rios? É um outro rio! Um rio... de sangue! 
Ali bem perto na Sadia, desde minha infância, quantos porcos morreram? Dá pra fazer um rio... Um rio de sangue! Uma Lagoa Vermelha! Um Mar Vermelho.
Desaguam ali, o sangue de todos os animais, de todos os lugares e de todas as épocas.
Arrogante ser humano, que se auto intitula rei do planeta e é inimigo número um dos viventes que aqui moram, inclusive de si próprio.
Queria eu, abrir o coração dos humanos, mas sou infantil. Um menino que ama errado:
Ama pinheiro.
Ama sapo.
Ama formigueiro. 
Porco.
Cobra coral que atravessa a estrada.
Lagarto.
Besouro chamado vira-bosta.
Amava desvirar o besouro quando esperneava no ar.
Amava as curicacas quando sobrevoavam, piando, para pernoitar nos galhos do pinheirão.
Amava escutar o vento e os galhos a dançar e o pinheirão a contar histórias do vento e depois finalizava: continue um bom menino! E o menino continua até hoje desvirando besouros. Até já escutou um desses a dizer: Obrigado! Bom menino que és!
Besouro que ama o estrume seco da vaca. 
Estrume que ama enriquecer a mãe terra. 
Mãe terra que ama dar vida ao pinheirão. 
Pinheirão que ama o menino.
Menino que cresceu e continua chorão. E agora ama errado até as mulheres: 
Mulheres mais novas que ele. Não tem remédio!
E não tem remédio, a falta de um amigo. No meu caso é o gigante que caiu ensanguentado.
O meu coração ainda está lá. O menino continua lá trepado na cerca, olhando para o vazio deixado na mata. E o vazio dentro dele.
Embargo minha voz, se digo de novo, seu nome. Mas vocês se lembram. 
É aquele - maior que as salsinhas e cebolinhas falantes da minha avó. Maior que “Meu Pé de Laranja-Lima falante do José Mauro de Vasconcelos”.
É aquele grandalhão e velho amigo que me contava histórias do vento. Vento antigo, testemunha ocular de tempos remotos.
Histórias do tempo... e do vento.
E lembrando uma velha música, pergunto:
“Vento, diga, por favor, aonde se escondeu o meu amor”.

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